Memórias de uma abelhinha de Irati

Tudo vale a pena quando a alma não e pequena

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Memórias de uma abelhinha de Irati

Memórias de uma abelhinha de Irati

Li certa vez numa revista dos anos 60,mais precisamente na revista Grande Hotel, uma frase que na época ainda não tinha nenhum sentido para uma jovem de 16 anos:

Recordar o passado é sofrer duas vezes...

Como poderia sentir o valor dessas palavras, se não chegara a hora de recordar profundamente o que ficou para trás, acomodada no presente?

Era preciso lançar âncoras no futuro, para poder sentir no coração e na alma o quanto dependemos das nossas lembranças para sentir que ainda estamos vivos.

Foi assim que decidi botar minhas memórias no papel machê do tempo, para codificar todos os caminhos pelos quais passei, todos os rostos que fotografei na tela da memória, e acima de tudo todas as palavras que narrarão esse livro de memórias que uma abelhinha desgarrada da sua colmeia, conseguiu arquivar em suas asinhas tão frágeis, que quase não suportando mais carregar tantas lembranças, resolve depositar num papel

A Segunda Guerra Mundial acabara um ano antes de nascer

Vim a luz do mundo pelas mãos generosas da Dona Negrinha Amaral, uma senhora já bastante idosa e com saúde debilitada.

Foi ela quem me aparou no momento de nascer. A ela minha eterna gratidão.

O período era de muitas dificuldades, face os transtornos causados por uma guerra insana, que durou anos ceifando vidas

O mundo procurava se estabilizar de novo, pois foram anos de muita angústia, principalmente naquelas famílias que viram seus filhos partirem para o front na Itália, como o Seu Isaltino Gonçalves, um pobre pai de família que ao voltar da guerra balanceado do juízo, passou a maltratar esposa e filhos

E foi também Virginia Leite, a nossa Santa Leite como enfermeira, amenizar as dores dos nossos pracinhas

Foi, viu e voltou daquele inferno,vindo a falecer já bem idosa, mas com uma bagagem enorme de solidariedade e amor ao próximo

O Grupão, como era chamado o Duque de Caxias, onde fui estudar mais tarde, foi um lugar sagrado para mim

Ali deixei minha ignorância e sai com uma bagagem de aprendizado para seguir em frente, agora com a luz do saber.

Lembro do dia em que cheguei pela primeira vez naquela salinha da pre escola, por volta dos meus 7 anos, sem saber ler e muito menos escrever

Fui recebida pela Professora Avany Martini Sebastião, esse era o seu nome

Pegando minha mão ainda assustada, me colocou numa mesinha com cadeirinhas pequeninas em volta, me deu o primeiro caderno escolar para rabiscar alguma coisa.

Hoje as crianças da pre escola são treinadas em casa com ajuda dos pais, da tv. E até mesmo da internet, mas naqueles tempos, no meu tempo a ignorância das letras era total e o máximo que pude fazer, foram umas bolinhas

Mais tarde, já, mais acostumada, fui ''trocada'' de sala, nessa já bem maior com carteiras tradicionais que tinha um tinteiro num buraquinho da carteira para molhar a caneta de pena

Em um dia de ''revista'' de higiene, fiquei apavorada, pois esquecera de catar os piolhos e por certo seria chamada atenção na frente dos coleguinhas

Passei a aula inquieta e tomei uma decisão:

Depois do recreio iria embora

Sai merendar, mas não sossegava, precisava ir embora logo em seguida

Então bolei um plano

Ao entrar na sala depois do recreio, rapidamente escrevi um bilhete para Professora, pedindo dispensa após o recreio, mas assinei com o nome da minha mãe

Me enchi de coragem e fui até a mesa da Professora Isaura e tremula, entreguei o tal bilhete a ela

Ela prontamente leu e me olhou sorrindo e disse:

Essa letra é tua.

Sem perder o prumo, retruquei;

Minha mãe não sabe escrever, por isso ela foi ditando e eu fui escrevendo

Resultado da aventura:

Ao chegar em casa mais cedo levei umas chineladas por ter mentido.

Valeu a lição:

Nunca mais fui para Escola sem fazer uma boa higiene, e isso me valeu uma condecoração como monitora da classe, com direito a usar uma fitinha vermelha no braço, e ajudar a Mestra quando precisava se ausentar da sala.

Quando a ignorância das letras é muito grande, é preciso muita paciência dos Professores, para colocar letra por letra no cérebro de uma criança, como se fosse um conta-gotas, até ela assimilar tudo e formar palavras

E formando palavras, criando frases

Comigo foi assim

Até então, a figura materna era o meu mundo e agora não

Fora substituída pela figura da Professora querida, que me esperava todos os dias para o aprender

Como foi difícil decorar o a-e-i-o-u de trás para frente, sem me atrapalhar

Lembro até que não consegui e chorei diante das risadas dos coleguinhas

Os deveres para casa naquele dia se resumiu nisso:

Copiar o a-e-i-o-u varias vezes no caderno de caligrafia

Valeu o esforço...Consegui

Ps:

Daqui para frente as minhas memórias futuras, ficarão comigo mesma, e comigo findarão, mas as mais marcantes, por certo ficam registradas

Não sei se serão lidas um dia por alguém, mas o mais importante é saber, que foram registradas com muito esforço, pois recordar o passado já diziam os antigos, é sofrer duas vezes

Um dia também passarei e quem sabe também serei lembrada por alguém, que com certeza vai dizer`:

Essa abelhinha foi corajosa.

 

 

 

 

 

Memórias de uma abelhinha de Irati
Enviado por Memórias de uma abelhinha de Irati em 29/04/2024
Alterado em 29/04/2024


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