No recôndito da alma...
A espera foi longa e os dias intermináveis, pra chegar diante desse momento, tão buscado, ante a galopante senhora chamada:velhice
Busco na tela do tempo e me vejo ainda criança;
Rosto sujo de carvão e pés no chão, aninhada dentro de um casebre côr-de-rosa.
Diante do fogão de lenha,escrevendo lições escolares,imitando a mestra querida.
Sonhava ser como ela, um dia...
O apito de um trem a me chamar pra realidade;era chegada a hora da refeição, e fazia-se nescessário ''socar a serragem.
Naquele fogão de lenha do tempo, ainda estão guardadas cinzas de saudade, do bolo de fubá,e do pinhão assado na chapa,nas frias e enluaradas noites de Irati.
Fogão aquecido,panela sobre a chapa fervendo,borbulhava água na chaleira, sem tampa.
Feijão e arroz,cozinhando, exalando o cheiro da fome.
No balde, pouca água...
Era urgência buscar no poço da dona Negrinha,o precioso liquido.
Mas pra chegar até o pocinho,era preciso atravessar o quintal da Nha Catarina,minha avó-madrinha,que docemente, trançava seus longos e loiros cabelos na soleira da porta,enquanto fumegava no fogão, uma panela de ferro encardida,sem tampa,herança da sua mãe,da qual fugira românticamente, no lombo de um cavalo baio,agarrada a cintura de um principe franzino e plebeu,descendente de escravos.
Ela, moça abastada,abrira mão da herança, pra viver aquele amor,do qual resultariam muitos descendentes,entre os quais, me incluo,como neta e afilhada.
Daquele gesto impensado, num momento de rebeldia,resultou em puro amor, dosado com muitas lágrimas tambem,
pois quem muito ama, paga sempre um preço elevado,e ela venceu barreiras,derrubou muros,subiu em árvores,mas viveu..
De repente a noticia chega rápido:
Nha Cristina Véia tá chegando,pra mais uma visita á neta querida,trazendo pendurada no braço, a inseparável sacolinha de costuras.
Miúda,dois olhinhos de um azul magnífico,vinha de longe la do rio bonito,travessando a cidade,sem esperar nenhum convite de visita.
Chegava repentinamente, e da mesma forma se ía, mais parecia a visita de um anjo.
O mesmo acontecia com a visita do Gaspar,o tio Gaspar,como era chamado seu irmão,um alemão desengonçado,
com calça guaiaca, quase caindo,segura por um cinturão de larga fivela...
Vinha de `´xoinville,´´sua cidade natal,assim como sua irmã Cristina,que era a avó materna,sendo ele então um tio-avô.
Trazia sempre debaixo do braço,revistas de historias de amor, que sempre adorava ler.
Ouço de repente vozes alteradas,na boca da noite;
É Pedro Maroto quem chega, troteando embriagado,com seus palavrões que fazem jús ao apelido.
Menino rebelde, desde a infância não deu ouvidos á Nha Catarina, sua mãe, e desapareceu no mundo,após uma discussão familiar.
Em vão seus familiares o procuraram nas redondezas, e até mais além foi buscado, pelo irmão motorista de caminhão, Eugenio,um rapaz de bela figura,emoldurada por vasta cabeleira,daí surgindo o seu apelido.
Genho guadelha.
Ao longe,se ouve o badalar da Ave Maria,anunciando o final de mais um dia, na hora do Angelus, da radio Difudora cultural iratiense.
Nos primeiros raios da manhã,com o sol inudando quintais,deixando mais coloridas as flôres dos pessegueiros,surge a figura do primo Jairo.
Um primo atencioso,que ao se dirigir a Oficina do tio juca, que tambem era mecânico,passava antes na casa do vó Hipolito, pedir o ''louvado,ou seja, a benção dos avós.
Respeitosamente, tirava o dedo da boca,que era um velho hábito da infância, deixava no ar um ''tiamanhã e seguia feliz,dentro do seu velho e surrado macacão de ''mercânico.
Mostrava-se preocupado com a saúde do irmão Daniel,um rapaz de semblante pálido e sorridente,que tinha grave lesão no coração, e precisava ser operado em São Paulo,de onde jamais ...
Pouco tempo depois,sua irmã Elisabete, a prima Elisa,tambem partia, vitima de grave enfermidade,deixando a sofrer sua ausência,além das duas filhinhas,sua franzina mãe Helena,que abalada ainda com a perda do Daniel,cantarolava noite e dia,tentando abafar nas notas musicais a dor das perdas.
Restara-lhe porem a filha Guiomar,sua filha mais velha,alem do filho jairo.
O primo Jairo porém,fazia o papel de velador da mãe, e não se ausentava muito,temendo pela sua vida.
Helena era seu nome...nome forte como ela.
O oposto dela, era sua irmã caçula Ana ,minha tia e madrinha.
De modo paxorrento,era a própria lerdeza em pessoa,andando sempre bem arrumada e deixando os filhos pra avó cuidar.
Folgada,também era Tia Eloina,uma morena faceira,que não pensou duas vêzes pra largar marido e filhos,seguindo um novo amor bandido, como se diz na canção.
Deixou a sofrer o ''Seu Joãoê, como chamava tio Joãozinho, cuidando dos filhos menores,trocando a segurança de um lar,perdeu-se num mundo de incertezas, pobre Eloína!
Se ela soubesse o mal que causaria a sua filha mais nova, Mirian, minha xará, teria pensado duas vezes,pois a menina desembestou e fugiu de casa, á procura da mãe,dando muitas preocupações ao pai,que a procurou incessantemente, até com apelos na Tv.
Até que um dia a prima Cleonice, a localizou num bairro distante da cidade,mas de nada adiantou,ela não quis mais voltar pra Irati, e tio Joãozinho, voltou sozinho.
Pobre tio Joãozinho!
Sempre muito calmo,com aqueles olhinhos claros,distribuindo sempre palavras da Bíblia pelos caminhos...
Terminou sozinho.
Só,porém não sozinho,terminou seu irmão Antonio,meu pai,largando a familia a própria sorte,preferiu as dores do mundo na solidão.
Num relacionamento mal explicado no passado,aproximou-se de uma jovem, que na verdade era a ex-esposa do seu maior rival, e com ela formou familia,da qual sou primogênita...
Amor ou revanche?
Não sei, fui fruto dessa união tumultuada,que abriu tantas feridas no decorrer da vida,que ainda hoje parecem sangrar,ao lembrar os fatos acontecidos, em decorrência disso tudo.
Sua maior virtude sempre foi o trabalho,do qual nunca desertou ,e nas poucas horas vagas,excelente músico,que enchia de notas musicais, a pequenina casa cor-de-rosa, apinhada de crianças, que,acanhadas,sentiam um certo temor na sua chegada,pois quase sempre trazia uma bronca desde portão,reclamava sempre de alguma coisa,por pura mania de reclamar.
A esposa, minha mãe,era pacifica,acostumada com os revezes da vida,pois aprendera sofrer com resignação,e aquele homem,rude porém trabalhador, caíra do céu pra sua vida,pois ela já trazia uma criança no colo,herança de uma união mal pensada.
Ele as acolheu...
Foi forte e correto,mas nunca esqueceu o passado que ferira a ambos.
Perdoar era fácil,dificil mesmo era esquecer,e pela vida afora, as cobranças de ambos,se sucederam:
Ela lembrava da traição sofrida com a outra que ja fora esposa dele e vice -versa...
Esse fato consumado,nunca permitiu que a felicidade reinasse naquele ambiente, infestado de lembranças que ferira a ambos.
Cada um era infeliz a sua maneira,porém a raíz era a mesma,e eles nunca conseguiram arrancar e jogar fora tal raíz.
Porque havia entre eles,uma criança naquela história, que não era um conto de faz-de- conta...
Existia a pequena Lili e sua presença, afloravam neles lembranças que machucavam a ambos,de um passado que houvera, e que nem mesmo a força do tempo,correndo célere,poderia apagar um dia,pois cada vez que olhassem pra aquela criança,um mundo de conflitos intimos brotaría..
Com a minha chegada áquela familia, as coisas amainaram,pois o nascimento de uma criança,sempre renova esperanças.
E me vi assim:
Crescendo num lar aparentemente estruturado,cujos pais,tentavam começar de novo.
Era um dia de outono,20 de Março de 1946...
O mundo, ainda se resentia das privações impostas, pela Segunda Guerra Mundial,que findara um ano antes.
Tôda guerra causa danos,tantos fisicos quanto morais,e foi num ambiente assim, que nasci numa tarde morna de outono, as 13h30.
A guerra acabara,porém pra mim ,começara a batalha pela vida,que é a mais árdua de tôdas as batalhas travadas,pois num campo de batalha,nunca se sabe o que nos reserva o final, e mesmo vencedores,somos vencidos por sentimentos contraditórios,que muitas vezes nos fazem recuar ou avançar,pra manter a linha do equilibrio,como alguem que busca se equilibrar, na corda bamba.
Vim,vi e venci...costumo repetir.
Venci barreiras quase intransponiveis,muitas vêzes fui atingida ferozmente por pessoas, que ao cruzar meu caminho,atiraram pesados petardos,tentando fazer-me desistir.
As dores que mais nos ferem no entanto,são causadas por quem muito amamos, e nesse item, fui premiada,com muitas ingratidões,que tentei superar algumas,outras nem tanto.
Desde muito pequena,me ví em situações de risco de vida,como num dia cinzento de inverno,catando lenha na serraria, fui arrastada por uma corrêia enorme,que por pouco não me destrói;fui poupada da morte certa e no decorrer da vida, ainda haveria de passar por outros momentos dificeis de suportar,como os assaltos e sequestro.
Sempre fui uma criança muito calada,ao ponto de pensarem que era mudinha, e hoje, analisando,chego a conclusão de que,meu mutismo, era proposital,pra guardar fôlego de vida,pra coisas e momentos futuros,que exigiriam muita força e coragem,como a solidão,ingratidão e o desamor.
O envelhecimento,não tira da gente o brilho dos olhos (Dr Marcos cabrera)